CARL SAGAN: Aproveite em vida tudo que puder
Carl Sagan (1934-1996) foi astrônomo, cosmólogo e escritor norte-americano, e o nerd mais legal que já existiu. Ficou famoso por deixar a ciência inteligível para qualquer um que tivesse meio cérebro. Sua série de documentários Cosmos, de 1980, inspirou uma geração inteira e eu considero a melhor série de TV do mundo. Assisti pela primeira vez faz uns cinco anos (queria ter visto aos 14 e não aos 24), mas desde então devorei todos os livros de Sagan e assisti Cosmos de novo umas mil vezes. A obra dele me explicou muita coisa: a história do cosmo, a evolução, a civilização, a beleza da ciência, os perigos da superstição e da pseudociência, a origem da religião - em suma: a vida, o universo e tudo mais. Carl Sagan foi o professor que eu nunca tive.
Assim mantemos a harmonia - Daniel Silva Dôri
Post convidado
Por Daniel Silva Dôri
O Brasil é um país onde pessoas de diferentes etnias, religiões e correntes (filosóficas e políticas) convivem em perfeita harmonia, onde prevalece o respeito, não há machismo nem homofobia. Só que não!
Não havia racismo na nossa sociedade até que os primeiros grupos de Rap começaram a surgir e o movimento Hip Hop se tornar conhecido para o grande público, denunciando o descaso e o abandono do Estado para as comunidades negras e a violência policial. Era o país de todas as cores até que os primeiros Movimentos Negros se levantaram e começaram a lutar por direitos negligenciados a séculos, não existiam racistas no país até que as primeiras leis de políticas afirmativas fossem aprovadas.
Ricos e pobres conviviam harmoniosamente até começarem a dividir o mesmo espaço em aeroportos, até que os votos dos mais pobres deixaram de ser fortemente influenciados pela classe formadora de opinião, não havia xenofobia explicita a nordestinos antes da ideia de que programas assistencialistas na região foram determinantes nos resultados das eleições.
Antes, não haviam linhas de pensamento político ou correntes filosóficas criminalizadas.
Também não havia homofobia antes que o primeiro autor de novela cogitasse beijo gay em horário nobre na TV, não se falava disso até que os primeiros ativistas denunciaram as mortes motivadas por ódio aos homossexuais, não havia transfobia anterior as primeiras reflexões sobre a transsexualidade, não tínhamos nenhum parlamentar homofóbico até o primeiro deputado assumidamente homossexual ser eleito.
Estávamos livres de discriminação religiosa até que os primeiros umbandistas, clandombecistas e espíritas ganhassem algum destaque na mídia, não havia bancada religiosa fundamentalista antes que os primeiros grupos de crenças minoritárias começassem a se manifestar e se apresentar perante a sociedade, também não existia preconceito contra descrentes, porque esses não saiam de seus armários.
Aqui não existia machismo até que as primeiras mulheres denunciassem que estavam ganhando menos fazendo o mesmo trabalho dos homens, não havia sexismo na época em que as mulheres não ocupavam cargos de chefia, gerenciais e executivos e nem exerciam funções de destaques na sociedade. Não havia misoginia até a primeira Maria da Penha começar lutar contra a violência doméstica.
Enfim, o Brasil era um país harmônico e pode voltar a ser, desde que os grupos dominantes não sejam incomodados e não tenham seus privilégios, garantidos por um sistema de oportunidades e direitos desiguais, ameaçados por lutas e reivindicações de minorias que podem desestabilizar a ordem em nome do progresso. Eles não querem isso, ELES QUEREM HARMONIA.
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O Velho Romeu (conto) - Devalmir Oliveira
Post convidado
Por Devalmir Oliveira Vieira Devas
Bem, vamos começar as apresentações: meu nome é Romeu, tenho exatamente 70 anos e estou obviamente aposentado. O que me mantém ainda com o ânimo para a vida é a minha imensa paixão pelas artes. Dentre elas, a minha preferida é a pintura, apesar de às vezes expor meus pensamentos por meio da literatura. Neste exato momento estou num Universo alternativo na mente de um cara aí, que não é necessário dizer quem é. Ademais, eu caminhei por diversos terrenos e estradas e agora creio ter pelo menos 0,00001% de experiência e de sabedoria quanto às coisas da vida.
Quando eu era criança, tinha uma curiosidade bem aguçada a respeito de tudo: ficava me perguntando como é possível que um simples relógio funcione, quem inventou os relógios, por que os pássaros voavam etc etc. Meus pais não eram o que se pode chamar de "pessoas felizes", viviam brigando mas me amavam muito. Minha mãe era a intelectual da casa, psicóloga, e meu pai era comerciante. Nunca entendi ao certo por que eles brigavam tanto, mas de uma coisa eu tinha certeza: quando eu fosse grande não ia haver entre mim e minha esposa desavenças desse tipo, isto se eu tivesse esposa um dia.
Pra ser sincero, apesar de ser tão curioso a respeito das coisas, meu desempenho na escola não era coisa que se podia chamar "promissora". Eu não me interessava pelas coisas que a escola me ensinava, eu queria saber quem eu era, por que estava aqui nessa Terra e pra onde eu ia depois que morresse. A escola não me ensinava a solucionar esses enigmas, pelo contrário... Me ensinava justamente a ser robotizado por coisas que eu não gostava. Sei que tudo aquilo era necessário, para poder trabalhar e comprar o que era preciso para a minha sobrevivência neste mundo, mas, cá entre nós: o que eu aprendi na escola? Simples: aprendi a odiar esse sistema de "educação" que não faz mais do que ensinar as pessoas a mergulharem na esterilidade da imaginação.
Quanto às minhas amizades na escola, eu era um garoto muito estranho, calado. Tive no máximo uns 10 amigos de verdade... Eles não se interessavam muito em saber quem eles eram de verdade. Mas eram ótimas pessoas e tomaram rumos diferentes na vida sempre mantendo a honestidade. É claro que eu vivi a minha adolescência e portanto, como tantos outros jovens, eu vivi a era negra. Me apaixonei, tive a primeira "namorada", mas isso não passou de uma ilusão de mais ou menos um mês. Ela era uma amiga preciosa e mesmo assim acabei destruindo a amizade ao me apaixonar por ela. Depois desse tempo fiquei zangado e comecei a aprontar, fiz coisas terríveis, cometi o pecado da luxúria com uma amiga e destruí a amizade de um outro. Estava "revoltado" sem saber que estava entrando em um abismo de onde era muito difícil sair. Apesar de ter entrado nesse abismo, eu era muito sensível, sentia forte as consequências na própria mente. Veio então a depressão: eu ficava horas e horas deitado sem dormir sempre pensando nas consequências daqueles atos puramente egoístas e desprezíveis tentando achar um jeito de me livrar daqueles pensamentos, mas não encontrava a luz. Não sabia eu que essa luz estava dentro de mim e, portanto, permaneci nas trevas espessas da insensatez mais uma vez. Essa foi a derradeira. Minha tristeza e solidão foi tão grande que eu resolvi mudar e procurar as respostas nos livros. Esse foi o princípio da subida e da saída do profundo abismo. Os livros que eu mais gostava de ler eram os que tratavam do ser humano, sua origem e finalidade; filosofia. Apesar de eu ter lido a bíblia várias vezes, não entendia muito o que estava escrito lá; portanto o enigma do pecado original e da redenção permaneceu até certo período da vida desconhecido para mim.
Os livros de filosofia me deixaram mais esperto acerca das coisas do mundo. Mas mesmo assim, a verdade que todos aqueles filósofos defendiam em suas teorias não era a minha. Eles encontraram suas verdades, com certeza. Porém os seus planos de existência eram diferentes do meu e ficou provado que todas aquelas filosofias serviriam para me ajudar a reformar meu pensamento; eu já tinha os meios, mas o X da questão era eu mesmo encontrar a minha verdade. Apesar de ter um desempenho não muito bom na escola, eu terminei o ensino fundamental e o médio com notas razoáveis e nunca repeti de ano.
Resolvi então, ao terminar os estudos, trabalhar como auxiliar de biblioteca por um tempo para poder pagar a faculdade. O curso que eu escolhi foi o de Filosofia. Naquela época meu desejo era que as pessoas ao meu redor também questionassem o porquê de estarem aqui nesse mundo e encontrarem por elas mesmas a resposta ou as respostas. O curso de Filosofia tinha como meta a chegada à licenciatura para poder dar aula. Por três anos fiquei nessa faculdade e depois me tornei professor de Filosofia.
Eu estava disposto a fazer com que a Filosofia passasse de disciplina chata e entediante, para uma disciplina amada e desejada pelos jovens alunos. Mas, como fazer isto? Decidi então não mandar meus alunos escreverem textos ou redações que nem eles mesmos viam sentido em fazer. Meu modo de ensinar era esse: Fazer perguntas a todos eles e conversar com eles sobre as coisas da vida sempre de modo que eles pudessem questionar e agir da maneira certa enquanto vivessem. Para mim, o papel da Filosofia não era apenas ficar no campo da teoria, explicar Kant ou Hegel, e sim pensar até que a dúvida fosse solucionada a respeito de quem o homem é e o que ele deve fazer nesta terra para ser feliz de verdade. Eu desprezava aquele tipo de filósofo criado entre quatro paredes. Para mim, o verdadeiro filósofo devia ser por fora o que ele já era por dentro;viver uma vida simples e natural de corpo e de alma.
Os alunos se interessaram pelo meu modo de ensinar e isso me deixou muito feliz e cada vez mais entusiasmado a ponto de lançar cada vez mais flechas ao longo do caminho daqueles alunos para que eles pudessem se orientar. De fato, poucos tiveram o mesmo desejo que eu. No entanto esses poucos me revelaram o verdadeiro sentido da minha vida: ser feliz fazendo os outros felizes ou pelo menos contribuindo um pouco para isso. Por dez anos lecionei Filosofia na escola pública, mais dez anos na escola particular e mais 10 anos na universidade. Isso contribuiu para que eu tivesse meios de me sustentar e até mesmo guardar um dinheiro. O dinheiro resolvi aumentar mais um pouco depois que aprendi a desenhar e a pintar. Eu estava financeiramente bem.
No entanto, apesar de ter encontrado esse "sentido" senti que faltavam ainda muitas coisas. Entre elas eu devia me despojar de tudo que havia conseguido, enfim, do meu conforto. Aos 50 anos decidi doar minha renda para os hospitais e tentar dar pelo menos um pouco de esperança a tantos doentes. Aparentemente isso me deixou feliz, sabendo que o dinheiro que eu havia conseguido com tanto esforço estava sendo doado para fins benéficos. Era ainda ilusão: a velhice acentuou minha solidão e as poucas pessoas amigas que eu tinha já haviam partido, ou se mudado para outros lugares. Eu não tive esposa nem filhos, mas para minha felicidade, alguns ex-alunos meus me visitavam as vezes. Para passar os últimos dias sem ser entediado, resolvi fazer desenhos das pessoas que eu gostava e dar de presente a elas, e outros eu deixava guardados em casa. Os desenhos eram realistas, modesta parte. Outra coisa que tive a vontade de aperfeiçoar foi a pintura. Os quadros deixam a minha casa com um tom colorido e diferente, o que me causa alegria. Meus dias agora se resumem a três coisas: artes, caminhadas e conversas com os outros idosos das praças. Afinal de contas, coetâneo gosta de coetâneo. A vida da gente, sendo vista por nós mesmos a uma distância deveras grande nos apresenta uma comédia, porém vista de perto nos seus sofrimentos e devaneios tem o caráter de uma tragédia. Essa nossa ideia de amor não passa de um egoísmo camuflado, quando jovem. Viver é ser feliz de verdade.
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Bem, vamos começar as apresentações: meu nome é Romeu, tenho exatamente 70 anos e estou obviamente aposentado. O que me mantém ainda com o ânimo para a vida é a minha imensa paixão pelas artes. Dentre elas, a minha preferida é a pintura, apesar de às vezes expor meus pensamentos por meio da literatura. Neste exato momento estou num Universo alternativo na mente de um cara aí, que não é necessário dizer quem é. Ademais, eu caminhei por diversos terrenos e estradas e agora creio ter pelo menos 0,00001% de experiência e de sabedoria quanto às coisas da vida.
Quando eu era criança, tinha uma curiosidade bem aguçada a respeito de tudo: ficava me perguntando como é possível que um simples relógio funcione, quem inventou os relógios, por que os pássaros voavam etc etc. Meus pais não eram o que se pode chamar de "pessoas felizes", viviam brigando mas me amavam muito. Minha mãe era a intelectual da casa, psicóloga, e meu pai era comerciante. Nunca entendi ao certo por que eles brigavam tanto, mas de uma coisa eu tinha certeza: quando eu fosse grande não ia haver entre mim e minha esposa desavenças desse tipo, isto se eu tivesse esposa um dia.
Pra ser sincero, apesar de ser tão curioso a respeito das coisas, meu desempenho na escola não era coisa que se podia chamar "promissora". Eu não me interessava pelas coisas que a escola me ensinava, eu queria saber quem eu era, por que estava aqui nessa Terra e pra onde eu ia depois que morresse. A escola não me ensinava a solucionar esses enigmas, pelo contrário... Me ensinava justamente a ser robotizado por coisas que eu não gostava. Sei que tudo aquilo era necessário, para poder trabalhar e comprar o que era preciso para a minha sobrevivência neste mundo, mas, cá entre nós: o que eu aprendi na escola? Simples: aprendi a odiar esse sistema de "educação" que não faz mais do que ensinar as pessoas a mergulharem na esterilidade da imaginação.
Quanto às minhas amizades na escola, eu era um garoto muito estranho, calado. Tive no máximo uns 10 amigos de verdade... Eles não se interessavam muito em saber quem eles eram de verdade. Mas eram ótimas pessoas e tomaram rumos diferentes na vida sempre mantendo a honestidade. É claro que eu vivi a minha adolescência e portanto, como tantos outros jovens, eu vivi a era negra. Me apaixonei, tive a primeira "namorada", mas isso não passou de uma ilusão de mais ou menos um mês. Ela era uma amiga preciosa e mesmo assim acabei destruindo a amizade ao me apaixonar por ela. Depois desse tempo fiquei zangado e comecei a aprontar, fiz coisas terríveis, cometi o pecado da luxúria com uma amiga e destruí a amizade de um outro. Estava "revoltado" sem saber que estava entrando em um abismo de onde era muito difícil sair. Apesar de ter entrado nesse abismo, eu era muito sensível, sentia forte as consequências na própria mente. Veio então a depressão: eu ficava horas e horas deitado sem dormir sempre pensando nas consequências daqueles atos puramente egoístas e desprezíveis tentando achar um jeito de me livrar daqueles pensamentos, mas não encontrava a luz. Não sabia eu que essa luz estava dentro de mim e, portanto, permaneci nas trevas espessas da insensatez mais uma vez. Essa foi a derradeira. Minha tristeza e solidão foi tão grande que eu resolvi mudar e procurar as respostas nos livros. Esse foi o princípio da subida e da saída do profundo abismo. Os livros que eu mais gostava de ler eram os que tratavam do ser humano, sua origem e finalidade; filosofia. Apesar de eu ter lido a bíblia várias vezes, não entendia muito o que estava escrito lá; portanto o enigma do pecado original e da redenção permaneceu até certo período da vida desconhecido para mim.
Os livros de filosofia me deixaram mais esperto acerca das coisas do mundo. Mas mesmo assim, a verdade que todos aqueles filósofos defendiam em suas teorias não era a minha. Eles encontraram suas verdades, com certeza. Porém os seus planos de existência eram diferentes do meu e ficou provado que todas aquelas filosofias serviriam para me ajudar a reformar meu pensamento; eu já tinha os meios, mas o X da questão era eu mesmo encontrar a minha verdade. Apesar de ter um desempenho não muito bom na escola, eu terminei o ensino fundamental e o médio com notas razoáveis e nunca repeti de ano.
Resolvi então, ao terminar os estudos, trabalhar como auxiliar de biblioteca por um tempo para poder pagar a faculdade. O curso que eu escolhi foi o de Filosofia. Naquela época meu desejo era que as pessoas ao meu redor também questionassem o porquê de estarem aqui nesse mundo e encontrarem por elas mesmas a resposta ou as respostas. O curso de Filosofia tinha como meta a chegada à licenciatura para poder dar aula. Por três anos fiquei nessa faculdade e depois me tornei professor de Filosofia.
Eu estava disposto a fazer com que a Filosofia passasse de disciplina chata e entediante, para uma disciplina amada e desejada pelos jovens alunos. Mas, como fazer isto? Decidi então não mandar meus alunos escreverem textos ou redações que nem eles mesmos viam sentido em fazer. Meu modo de ensinar era esse: Fazer perguntas a todos eles e conversar com eles sobre as coisas da vida sempre de modo que eles pudessem questionar e agir da maneira certa enquanto vivessem. Para mim, o papel da Filosofia não era apenas ficar no campo da teoria, explicar Kant ou Hegel, e sim pensar até que a dúvida fosse solucionada a respeito de quem o homem é e o que ele deve fazer nesta terra para ser feliz de verdade. Eu desprezava aquele tipo de filósofo criado entre quatro paredes. Para mim, o verdadeiro filósofo devia ser por fora o que ele já era por dentro;viver uma vida simples e natural de corpo e de alma.
Os alunos se interessaram pelo meu modo de ensinar e isso me deixou muito feliz e cada vez mais entusiasmado a ponto de lançar cada vez mais flechas ao longo do caminho daqueles alunos para que eles pudessem se orientar. De fato, poucos tiveram o mesmo desejo que eu. No entanto esses poucos me revelaram o verdadeiro sentido da minha vida: ser feliz fazendo os outros felizes ou pelo menos contribuindo um pouco para isso. Por dez anos lecionei Filosofia na escola pública, mais dez anos na escola particular e mais 10 anos na universidade. Isso contribuiu para que eu tivesse meios de me sustentar e até mesmo guardar um dinheiro. O dinheiro resolvi aumentar mais um pouco depois que aprendi a desenhar e a pintar. Eu estava financeiramente bem.
No entanto, apesar de ter encontrado esse "sentido" senti que faltavam ainda muitas coisas. Entre elas eu devia me despojar de tudo que havia conseguido, enfim, do meu conforto. Aos 50 anos decidi doar minha renda para os hospitais e tentar dar pelo menos um pouco de esperança a tantos doentes. Aparentemente isso me deixou feliz, sabendo que o dinheiro que eu havia conseguido com tanto esforço estava sendo doado para fins benéficos. Era ainda ilusão: a velhice acentuou minha solidão e as poucas pessoas amigas que eu tinha já haviam partido, ou se mudado para outros lugares. Eu não tive esposa nem filhos, mas para minha felicidade, alguns ex-alunos meus me visitavam as vezes. Para passar os últimos dias sem ser entediado, resolvi fazer desenhos das pessoas que eu gostava e dar de presente a elas, e outros eu deixava guardados em casa. Os desenhos eram realistas, modesta parte. Outra coisa que tive a vontade de aperfeiçoar foi a pintura. Os quadros deixam a minha casa com um tom colorido e diferente, o que me causa alegria. Meus dias agora se resumem a três coisas: artes, caminhadas e conversas com os outros idosos das praças. Afinal de contas, coetâneo gosta de coetâneo. A vida da gente, sendo vista por nós mesmos a uma distância deveras grande nos apresenta uma comédia, porém vista de perto nos seus sofrimentos e devaneios tem o caráter de uma tragédia. Essa nossa ideia de amor não passa de um egoísmo camuflado, quando jovem. Viver é ser feliz de verdade.
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Sobre boatos (Hoax) viralizados nas redes sociais - Daniel Silva Dôri
Post convidado
Por Daniel Silva Dôri
A Web 2.0 tornou qualquer um que mantenha e atualize uma rede social um agente da comunicação que publica e compartilha informação. Sendo assim é preciso entender que todos nós temos responsabilidades sobre aquilo que publicamos na internet.
O que mais tem sido visto por aqui são boatos, calúnias, mentiras e difamações disseminadas nas mídias sociais e blogs de todas as formas, desde vídeos, posts, até os famigerados memes. Na maioria das vezes pelos perfis mais moralistas da internet, verdadeiros bastiões da "moralidade e dos bons costumes" que não pensam duas vezes antes de publicar uma suposta "notícia" que valide suas ideias mais preconceituosas sobre uma personalidade ou algum acontecimento.
As mais recentes são o suposto financiamento público a um documentário sobre o deputado Jean Wyllys e uma suposta foto de um rapaz morto pela PM do Rio trocando balas com a polícia com um fuzil. Os dois casos validam, pra essas pessoas, a polarização que separa os que apoiam a corrupção daqueles que são contra (me sinto mal por ter que escrever um absurdo desses), os desonestos dos honestos, os bandidos das pessoas de bem, os destruidores dos defensores da família, enfim como se não fosse possível pensar além dessa lógica rasa e binária imposta das eleições pra cá.
Sobre o filme, primeiro ele havia sido aprovado pela Ancine (Agência Nacional de Cinema) a captar recursos de empresas privadas por meio de Leis de incentivo fiscal para produções culturais (entre elas a Rouanet), mas isso não significa que sairá dinheiro dos cofres públicos diretamente para as mãos dos produtores, a verdade é que as empresas que patrocinariam o filme é que seriam beneficiadas com reduções de impostos. Ainda assim os produtores não conseguiram captar esses recursos com a Lei Rouanet e o documentário será finalizado através de crowdfunding (vaquinha na internet feita por pessoas que voluntariamente querem contribuir com um projeto).
Segue maiores informações no site E-Farsas.
Sobre o caso do garoto assassinado no Rio, é só mais um exemplo entre tantos outros da desonestidade que inundou a internet junto com a onda conservadora, reacionária e moralista. Puro lixo viralizado pelos adeptos da Filosofia "do bandido bom é bandido morto" e "Direitos Humanos são para humanos direitos", isso não é novo já aconteceu anteriormente com outro garoto morto com um tiro na cabeça no morro do Alemão.
O E-farsas também esclareceu esse caso.
Mas o problema não para por aí, o pior é que mesmo quando a verdade é mostrada pra essas pessoas, em boa parte dos casos elas mantém essas publicações, elas simplesmente não dão a mínima, não se importam em compartilhar mentira desde que essa mentira reafirme algo contra a pessoa ou a ideia que ele não gosta. Já presenciei pessoas se justificando: "não importa, Fulano não presta mesmo", "tá cheio desses bandidinhos por aí mesmo", entre outras coisas lamentáveis de se ler ou ouvir.
Se fala muito em crise nos dias de hoje mas o buraco é bem mais embaixo, a crise não é só política e econômica, ela também é moral e ética. Uma crise moral e ética que não restringe só ao poder e se alastra a todas as camadas da sociedade, de cima para baixo e de baixo para cima em ciclos. É preciso pensar sério sobre isso, antes que entremos num caminho sem volta.
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O AMOR É UMA FALÁCIA - Max Shulman
Mesma idade, mesma formação, mas burro como uma vaca. Um bom sujeito, compreendam, mas sem nada lá em cima. Do tipo emocional. Instável, impressionável. Pior que tudo, dado a manias. Eu afirmo que a mania é a própria negação da razão. Deixar-se levar por qualquer nova moda que apareça, entregar-se a alguma idiotice só porque os outros a seguem, isto, para mim, é o cúmulo da insensatez. Peter, no entanto, não pensava assim.
Certa tarde, encontrei-o deitado na cama com tal expressão de sofrimento no rosto que o meu diagnóstico foi imediato: Apendicite!
- Não se mexa. Não tome laxante. Vou chamar o médico.
- Marmota... - balbuciou ele.
- Marmota? - disse eu interrompendo minha corrida.
- Quero um casaco de pele de marmota - gemeu ele.
Percebi que o seu problema não era físico, mas mental.
- Por que você quer um casaco de pele de marmota?
- Eu devia ter adivinhado - gritou ele, dando tapas na própria cabeça.
- Devia ter adivinhado que esta moda ia voltar. Como um idiota, gastei todo o meu dinheiro em livros para as aulas e agora não posso comprar um casaco de pele de marmota!
- Quer dizer - perguntei incrédulo - que estão mesmo usando casacos de pele de marmota outra vez?
- Todas as Pessoas Importantes da Universidade estão. Onde você tem andado?
- Na biblioteca, lógico! - respondi, citando um lugar não muito freqüentado pelas Pessoas Importantes da Universidade.
Ele saltou da cama e pôs-se a andar de um lado para o outro do quarto.
- Preciso conseguir um casaco de pele de marmota. - Preciso!
- Por que, Peter? Veja a coisa de maneira racional. Pense! Casacos de pele de marmota são anti-higiênicos. Soltam pêlos. Cheiram mal. Juntam ácaros. Juntam pó. São pesados, são feios, são...
- Você não compreende - interrompeu ele com impaciência. - É o que todos estão usando. Você não quer andar na moda?
- Não - respondi sinceramente.
- Pois eu, sim! - declarou ele. - Daria tudo para ter um casaco de pele de marmota. Tudo!
Aquele instrumento de precisão, meu poderoso cérebro, começou a funcionar a todo vapor.
- Tudo? - perguntei, examinando seu rosto com os olhos semicerrados.
- Tudo! - confirmou ele, em um tom dramático.
Alisei o queixo, pensativo. Eu, por acaso, sabia onde encontrar um casaco de pele de marmota. Meu pai usara um nos seus tempos de estudante; estava agora esquecido dentro de um baú, no porão de nossa casa. E, também por acaso, Peter tinha algo que eu queria. Não era dele, exatamente, mas pelo menos ele tinha alguns direitos sobre ela. Refiro-me à sua pequena, Polly Stein.
Eu há muito desejava Polly Stein. Apresso-me a esclarecer que meu desejo não era de natureza emotiva. A moça, não há dúvidas, despertava paixões. Era daquelas que decretavam feriado nacional por onde quer que passasse. Todos paravam para vê-la passar. Até mesmo (ou principalmente) as mulheres, se corroendo de inveja... mas eu não era daqueles que se deixam dominar pelo coração. Desejava Polly para fins engenhosamente calculados e inteiramente cerebrais.
Cursava eu o primeiro ano de Direito. Dali a algum tempo estaria me iniciando na profissão. Eu sabia muito bem a importância que tinha a esposa na vida e na carreira de um advogado. Os advogados de sucesso, segundo minhas observações, eram quase sempre casados com mulheres bonitas, graciosas e inteligentes. Com uma única exceção, Polly preenchia perfeitamente todos esses requisitos.
Ela era linda. Graciosa também era. Por graciosa, quero dizer, cheia de graças sociais. Finíssima! Tinha o porte ereto, a naturalidade no andar e a elegância que deixavam transparecer a melhor das linhagens. À mesa, suas maneiras eram finíssimas. Eu já vira Polly no barzinho da escola comendo a especialidade da casa - um sanduíche que continha pedaços de carne assada, molho, castanhas e repolho - sem nem sequer umedecer os dedos.
Inteligente ela não era. Na verdade, tendia para o oposto. Mas eu confiava que, sob minha tutela, haveria de tornar-se brilhante. Pelo menos, valia a pena tentar. Afinal de contas, é mais fácil fazer uma moça bonita e burra ficar inteligente do que uma moça feia e inteligente ficar bonita.
- Peter! - perguntei - você ama Polly Stein?
- Acho-a uma boa garota - respondeu - mas não sei se chamaria isso de amor.
Por quê?
- Você - continuei - tem alguma espécie de arranjo formal com ela? Quero dizer, vocês saem exclusivamente um com o outro?
- Não. Ficamos juntos, quase sempre, mas saímos os dois com outros também. Por quê?
- Existe alguém - perguntei - algum outro homem de quem ela goste de maneira especial?
- Que eu saiba, não. Por quê?
- Fiz que sim, com a cabeça, satisfeito.
- Em outras palavras, a não ser por você, o campo está livre, é isto?
- Acho que sim, bolas. Que papo estranho é esse?
- Nada, nada - respondi com inocência, tirando minha mala de dentro do armário.
- Onde é que você vai? - quis saber Peter.
- Passar o fim-de-semana em casa.
Atirei algumas roupas dentro da mala.
- Escute - disse Peter, apegando-se com força ao meu braço - em casa, será que você não poderia pedir dinheiro ao seu pai, e me emprestar para comprar um casaco de pelo de marmota?
- Posso até fazer mais do que isso - respondi, piscando o olho misteriosamente. Volto na segunda.
Fechei a mala e saí. O final de semana demorou a passar. Eu estava ansioso para encontrar Peter na segunda.
- Olhe - disse a Peter, ao voltar na segunda-feira pela manhã.
Abri a mala e mostrei o enorme objeto cabeludo e fedorento que meu pai usara em seu tempo de universidade.
- Santo Pai! - exclamou Peter, com reverência. Mergulhou as mãos no pelo do casaco, e depois o rosto.
- Santo Pai! - repetiu umas quinze ou vinte vezes.
- Você gostaria de ficar com ele? - perguntei.
- Sim, sim! - gritou ele, apertando a coisa sebosa contra o peito.
Em seguida, seus olhos tomaram um ar precavido.
- O que você quer em troca?
- A sua namorada - disse eu, não desperdiçando as palavras.
- Polly? - sussurrou Peter, horrorizado. - Você quer a Polly?
- Isto mesmo... Ele jogou o casaco para longe. - Nunca! - declarou resoluto.
Dei de ombros.
- OK. Se você não quer andar na moda, o problema é seu...
Sentei numa cadeira e fingi que lia um livro, mas continuei espiando Peter, com o rabo dos olhos. Aquele era um homem partido em dois. Primeiro olhava para o casaco, com a expressão de uma criança de rua à porta de um Mc Donalds. Depois dava-lhe as costas e cerrava os dentes, altivo. Depois, voltava a olhar para o casaco, com uma expressão ainda maior de desejo no rosto. Depois, virava-se outra vez, mas agora sem tanta resolução. Sua cabeça ia e vinha, o desejo aumentando, a resolução “despencando”. Finalmente não se virou mais; ficou olhando para o casaco com pura lascívia. O desejo falara mais alto.
- Não é como se eu estivesse apaixonado por Polly - balbuciou. - ou mesmo a namorando, ou coisa parecida.
- Isso mesmo - murmurei.
- Afinal, Polly significa o que para mim, ou eu para ela?
- Nada - respondi.
- Foi uma coisa banal. Nos divertimos um pouco, só isso... ficamos, às vezes.
- Experimente o casaco - disse eu.
Ele obedeceu. O casaco cobria as orelhas e caía até os sapatos. Ele parecia um monte de marmotas mortas. Pensando bem, não tinha jeito das marmotas estarem vivas.
- Serve perfeitamente. - disse, contente.
Levantei da cadeira e perguntei, estendendo a mão:
- Negócio feito?
- Feito - disse ele engolindo em seco e apertando a minha mão.
Saí com Polly pela primeira vez na noite seguinte. O primeiro programa teria o caráter de uma pesquisa preparatória. Eu desejava avaliar o trabalho que me esperava para elevar a sua mente ao nível desejado. Levei-a para um jantar.
- Puxa, que jantar bacana! - disse ela, quando saímos do restaurante. Fomos ao cinema.
- Puxa, que filme bacana! - disse ela, quando saímos do cinema.
Levei-a para casa.
- Puxa, foi um programa bacana. - disse ela ao me desejar boa noite.
Voltei para o quarto com o coração pesado. Eu subestimara gravemente as proporções da minha tarefa. A ignorância daquela moça parecia aterradora. E não seria o bastante apenas instruí-la. Era preciso, antes de tudo, ensiná-la a pensar. O empreendimento a que eu me propusera era simplesmente gigantesco, e a princípio me vi inclinado a devolvê-la a Peter. Mas aí comecei a pensar nos seus dotes físicos generosos, no olhar de inveja que ela despertava nos homens e mulheres quando “desfilava” pelos corredores da universidade, na maneira como entrava numa sala ou segurava uma faca e um garfo, e aí, decidi tentar novamente.
Procedi, com sempre, sistematicamente. Dei-lhe um curso de Lógica. Acontece, que como estudante de Direito, eu freqüentava na ocasião aulas de Filosofia e de Metodologia Científica, e portanto, tinha tudo na ponta da língua.
- Polly - disse eu, quando a fui buscar para o nosso segundo programa. Esta noite iremos até o parque conversar.
- Oh, que bacana! - respondeu ela.
Uma coisa deve ser dita em favor da moça: seria difícil encontrar alguém tão bem disposta para tudo.
Fomos até o parque, o local de encontros da Universidade, nos sentamos debaixo de um velho carvalho, e ela me olhou cheia de expectativa.
- Sobre o que vamos conversar? - perguntou.
- Sobre Lógica.
Ela pensou durante alguns segundos e depois sentenciou:
- Bacana! Bacana!
- A Lógica - comecei, limpando a garganta - é a ciência do pensamento. Se quisermos pensar corretamente, é preciso antes saber identificar as falácias mais comuns da Lógica. É o que vamos abordar hoje.
- Bacana! - exclamou ela, batendo as palmas de alegria, com a mesma expressão de perspicácia que se esperaria de uma foca diante da possibilidade de ganhar um peixe. Fiz uma careta de desânimo, mas segui em frente, com coragem.
- Vamos primeiro examinar uma falácia chamada Dicto Simpliciter.
- Vamos - animou-se ela, piscando os olhos com animação.
- Dicto Simpliciter quer dizer um argumento baseado numa generalização não qualificada. Por exemplo: o exercício é bom, portanto todos devem se exercitar.
- Eu estou de acordo - disse Polly, fervorosamente. - Quer dizer, o exercício é maravilhoso. Isto é, desenvolve o corpo e tudo.
- Polly - disse eu, com ternura - esse argumento é uma falácia. Dizer que o exercício é bom é uma generalização não qualificada. Por exemplo: para quem sofre do coração, o exercício é ruim. Muitas pessoas têm ordens de seus médicos para não se exercitarem. É preciso qualificar a generalização. Deve-se dizer: o exercício é geralmente bom, ou é bom pra maioria das pessoas. Senão, está se cometendo um Dicto Simpliciter. Compreendeu?
- Não - confessou ela. - Mas isto é bacana. Quero mais. Quero mais! Fala! Fala!
- Será melhor se você parar de puxar a manga do meu casaco - disse eu e, quando ela parou, continuei...
- Em seguida, abordaremos uma falácia muito comum chamada Generalização Apressada. Ouça com atenção: você não sabe falar francês, eu não sei falar francês, Peter Johnson não sabe falar francês. Devo portanto concluir que ninguém na Universidade sabe falar francês.
- É mesmo? - espantou-se Polly.- Ninguém? Nem uma pessoa?
Reprimi a minha impaciência...
- É uma falácia, Polly. Essa generalização foi feita de maneira apressada. Não há exemplos suficientes para justificar essa conclusão.
Ela sorriu, encantadora... mas que cara de retardada - pensei.
- Você conhece outras falácias? - perguntou ela, animada. - Isto é até melhor do que dançar!
- Esforcei-me por conter uma onda de desespero que ameaçava me invadir. Não estava conseguindo nada com aquela moça. Absolutamente nada! Mas não sou outra coisa senão persistente. Quase teimoso. Continuei ...
- A seguir, vem o Post-Hoc. Ouça: não vamos levar Bill conosco ao piquenique. Toda vez que ele vai junto, começa a chover.
- Eu conheço uma pessoa exatamente assim. - exclamou Polly. Uma moça da minha cidade, Eula Becker. Nunca falha. Toda a vez que ela vai junto a um piquenique...
- Polly, interrompi com energia. – Isso é uma falácia. Não é Eula Becker que causa a chuva. Ela não tem nada a ver com a chuva. Você estará incorrendo em Post-Hoc se puser a culpa na Eula Becker.
- Nunca mais farei isso. - prometeu ela contrita. - você está bravo comigo?
- Não, Polly. - suspirei - não estou bravo.
Talvez fosse mais fácil ensinar Lógica a um chimpanzé – pensei...
- Então conte outra falácia – pediu Polly.
- Muito bem. Vamos experimentar as Premissas Contraditórias. Se Deus pode fazer qualquer coisa, então pode criar uma pedra tão pesada que Ele mesmo não conseguirá levantar!
- É claro. - respondeu ela imediatamente.
- Mas, se Ele pode fazer tudo, então Ele também pode levantar a pedra - exclamei.
- É mesmo - disse ela pensativa.
- Bem, então, acho que Ele não pode fazer a tal pedra.
- Mas Ele pode fazer tudo - lembrei-lhe.
Ela coçou sua cabeça linda e vazia. Aquele cérebro poderia ser vendido como “Zero Quilômetros”... jamais fora usado!
- Estou confusa - admitiu.
- É claro que está. Quando as premissas de um argumento se contradizem, não pode haver argumento. Se existe uma força irresistível, não pode existir um objeto irremovível. Compreendeu?
- Não – mas conte outra destas histórias bacanas. Estou adorando! - disse Polly entusiasmada.
Consultei o relógio.
- Acho melhor pararmos por aqui. Levarei você para casa, e lá você pensará no que aprendeu hoje. Teremos outra sessão amanhã à noite.
Depositei-a no dormitório das moças, onde ela me assegurou que a noitada fora realmente bacana, e voltei completamente desanimado para o meu quarto. Peter roncava sobre sua cama, com o casaco de pele de marmota encolhido a seus pés como um enorme animal cabeludo. Por alguns segundos, brinquei com a idéia de acordá-lo e dizer que podia ter sua namorada de volta.
Era evidente que meu projeto estava condenado ao fracasso. Aquela moça tinha, simplesmente, uma cabeça totalmente à prova de lógica.
Mas logo reconsiderei. Perdera uma noite, por que não perder outra? Quem sabe se em alguma parte daquela cratera de vulcão adormecido, que era a mente de Polly, algumas “brasas” de inteligência ainda estivessem vivas? Talvez, de alguma maneira, eu ainda conseguisse abaná-las até que flamejassem... As perspectivas não eram das mais animadoras, mas acabei decidindo e tentei outra vez.
Sentado sob o mesmo carvalho, na noite seguinte, disse:
- Nossa primeira falácia desta noite se chama Ad Misericordiam.
Ela estremeceu de emoção.
- Ouça com atenção - comecei.
- Um homem vai pedir emprego. Quando o patrão pergunta quais são as suas qualificações, o homem responde que tem uma mulher e seis filhos em casa, que a mulher é aleijada, as crianças não têm o que comer, não têm o que vestir, nem o que calçar, a casa não tem camas, não há carvão no porão e o inverno se aproxima.
Uma lágrima desceu por cada uma das faces rosadas de Polly.
- Isso é horrível, horrível! – soluçou, quase chorando.
- É horrível - concordei - mas não é argumento. O homem não respondeu à pergunta do patrão sobre suas qualificações. Em vez disso, tentou despertar a sua compaixão. Cometeu a falácia do Ad Misericordiam. Compreendeu?
- Você tem um lenço? - pediu ela, entre soluços.
Dei-lhe o lenço e fiz o possível para não gritar de desespero, enquanto ela enxugava os olhos.
- A seguir - disse, controlando o tom da minha voz - discutiremos a Falsa Analogia. Eis um exemplo: deviam permitir aos estudantes consultar seus livros durante as provas. Afinal, os cirurgiões levam radiografias para se guiarem durante uma operação, os advogados consultam seus papéis durante um julgamento, os construtores têm plantas e projetos que os orientam na construção de uma casa. Por que, então, não deixar que os alunos recorram a seus livros durante uma prova?
- Pois olhe - disse ela entusiasmada - esta é a idéia mais bacana que eu já ouvi na minha vida! Você é um gênio!
- Polly - disse eu com impaciência - o argumento é falacioso. Os cirurgiões, os advogados e os construtores não estão fazendo testes para ver o que aprenderam, e os estudantes sim. As situações são completamente diferentes e não se pode fazer analogia entre elas. Não tem jeito de comparar uma situação com a outra, entendeu?
- Continuo achando a idéia bacana. - disse Polly.
- Bolas! - murmurei. E prossegui, persistente (fazendo uma meia careta) . A seguir, tentaremos a falácia Hipótese Contrária ao Fato.
- Ah! Essa parece ser boa - foi a reação de Polly.
- Ouça: se Madame Curie não deixasse, por acaso, uma chapa fotográfica numa gaveta junto com uma pitada de pechblenda, nós hoje não saberíamos da existência do elemento químico Rádio. Graças a essa descoberta, hoje sabemos o que é radioatividade!
- É mesmo, é mesmo! Brilhante! - concordou Polly, sacudindo vigorosamente a cabeça.
- Você viu o filme? Eu fiquei louca com aquele filme. Aquele ator, o Walter Pidgeon é tão bacana! Ele me fez vibrar!
- Se você conseguir esquecer o Sr. Pidgeon por alguns minutos - disse eu friamente - gostaria de lembrar que o que eu disse é uma falácia. Madame Curie poderia ter descoberto o Rádio de alguma outra maneira. Talvez outra pessoa o descobrisse. Muita coisa poderia acontecer. Não se pode partir de uma hipótese baseada no acaso e tirar dela qualquer conclusão lógica.
- Eles deveriam botar o Walter Pidgeon em mais filmes - disse Polly. Eu quase não o vejo no cinema. Ele é lindo!
A impaciência voltou a me torturar. Como um ser humano pode ser tão ignorante? – pensei. Mais uma tentativa! - decidi. Mas só mais uma. A ultima! Há um limite ao que um homem pode suportar.
- A próxima falácia é chamada Envenenar o Poço.
- Que bonitinho! - deliciou-se Polly.
- Dois homens vão começar um debate. O primeiro se levanta e diz: "Meu oponente é um mentiroso conhecido. Não é possível acreditar numa só palavra do que ele disser". Agora, Polly, pense bem. O que está errado?
Vi-a enrugar a sua testa cremosa, concentrando-se. De repente, um brilho de inteligência - o primeiro que eu vira - surgiu em seus olhos.
- Não é justo! - disse ela com indignação – Isso não é nada justo. Que chance tem o segundo homem se o primeiro diz que é um mentiroso, antes mesmo dele começar a falar?
- Exato! - gritei exultante. - Cem por cento exato! Não é justo. O primeiro homem envenenou o poço antes que os outros pudessem beber dele. Atou as mãos do adversário antes da luta começar... Polly, estou orgulhoso de você!
- Ora - murmurou ela, ruborizando de prazer.
- Como vê, minha querida, não é tão difícil. Só requer concentração. É só pensar, examinar, avaliar. Venha, vamos repassar tudo que aprendemos até agora.
- Vamos lá - disse ela, com um abano distraído de mão. Animado pela descoberta de que Polly não era uma cretina total, comecei uma longa e paciente revisão de tudo que dissera até ali. Sem parar, citei exemplos, apontei falhas, martelei “lógica” sem dar tréguas. Era como cavar um túnel. A princípio, apenas trabalho, suor e escuridão. Não tinha idéia de quando veria a luz, ou mesmo se a veria. Mas insisti. Dei duro, cavouquei até com as unhas, e finalmente fui recompensado. Descobri uma fresta de luz. E a fresta foi se alargando até que, finalmente, o sol jorrou para dentro do túnel, clareando tudo. Polly finalmente parecia ter sido apresentada ao “conhecimento”.
Levara cinco noites de trabalho forçado, mas valera a pena. Eu transformara Polly em uma lógica, e a ensinara a pensar. Minha tarefa chegara a bom termo. Fizera dela uma mulher digna de mim. Somente agora ela estava apta a ser minha esposa, uma anfitriã perfeita para as minhas muitas mansões, uma mãe adequada para meus filhos privilegiados.
Não se deve deduzir que eu não sentisse amor pela moça. Muito pelo contrário. Na mitologia grega, Pigmalião amava a mulher perfeita que moldara para si; eu também amava a minha doce Polly, que moldei com o suor do meu conhecimento. Decidi comunicar-lhe os meus sentimentos no nosso encontro seguinte. Chegara a hora de mudar nossas relações, de acadêmicas para românticas.
- Polly - disse eu, na próxima vez em que nos sentamos sob aquele mesmo carvalho – hoje não falaremos de falácias.
- Puxa! - disse ela, desapontada.
- Minha querida - prossegui, favorecendo-a com um sorriso - hoje é a sexta noite em que estamos juntos. Nos demos esplendidamente bem. Não há dúvidas de que formamos um bom par.
- Generalização Apressada - exclamou ela alegremente.
- Perdão - disse eu.
- Generalização Apressada - repetiu ela. - Como é que você pode dizer que formamos um bom par baseado em apenas cinco encontros?
Dei uma risada, divertido. Aquela criança adorável aprendera bem suas lições.
- Minha querida - disse eu, dando um tapinha tolerante em sua mão – cinco encontros são o bastante. Afinal, não é preciso comer um bolo inteiro para saber se ele é bom ou não.
- Falsa Analogia - disse Polly prontamente - Eu não sou um bolo, sou uma pessoa. Não se pode comparar duas situações completamente diferentes e chegar à uma conclusão análoga!
Dei outra risada, mas agora já não tão divertida. Essa criança adorável talvez tivesse aprendido sua lição bem até demais. Resolvi mudar de tática. Obviamente, o indicado era uma declaração de amor simples, direta e convincente. Fiz uma pausa, enquanto meu cérebro privilegiado selecionava as palavras adequadas. Depois comecei:
- Polly, eu a amo. Você é tudo no mundo para mim... é a lua e as estrelas... as constelações no firmamento. Por favor, minha querida, diga que será minha namorada, senão minha vida não terá mais sentido. Enfraquecerei, recusarei a comida, vagarei pelo mundo aos tropeções, um fantasma de olhos vazios...
Pronto! - pensei, está liquidado o assunto. Agora ela cai em meus braços!
- Ad Misericordiam - disse Polly.
Cerrei os dentes. Eu não era mais o Pigmalião da mitologia; era o Dr. Frankenstein, e o monstro que eu havia criado me tinha pela garganta. Lutei desesperadamente contra o pânico que ameaçava me invadir. Era preciso manter a calma a qualquer preço.
- Bem, Polly - disse eu, forçando um sorriso. - não há dúvidas que você aprendeu bem as falácias.
- Aprendi mesmo - respondeu ela, inclinando a cabeça com vigor.
- E quem foi que as ensinou a você, Polly?
- Foi você.
- Isso mesmo. E portanto você me deve alguma coisa, não é mesmo, minha querida? Se não fosse por mim, você nunca saberia o que é uma falácia...
- Hipótese Contrária ao Fato - disse ela sem pestanejar. Eu poderia descobrir através de outra pessoa, ou até mesmo sozinha, algum dia. Não se pode tirar conclusões definitivas baseadas em acasos.
Enxuguei o suor do rosto, já lívido – o desespero afigurava-se nítido em meus olhos.
- Polly - insisti, com voz rouca - você não deve levar tudo ao pé da letra. Estas coisas só têm valor acadêmico. Você sabe muito bem que o que aprendemos na escola nada tem a ver com a vida.
- Dicto Simpliciter. - brincou ela, sacudindo o dedo na minha direção. Quer que eu diga o porquê?
Foi o bastante! Levantei-me num salto, berrando como um touro indomável.
- Você vai ou não vai me namorar? - trovejei.
- Não, eu não vou - respondeu ela.
- Por que não? – exigi uma resposta.
- Porque hoje à tarde prometi a Peter Johnson que seria a namorada dele.
Quase caí para trás, fulminado por tamanha infâmia. Depois de prometer, depois de fecharmos negócio, depois de apertar a minha mão!
- Aquele rato! - gritei chutando a grama. - Você não pode sair com ele, Polly. É um mentiroso. Um traidor. Um rato.
- Envenenar o Poço - disse Polly. E pare de gritar. Acho que gritar também deve ser uma falácia.
Com uma admirável demonstração de força de vontade, modulei minha voz.
- Muito bem - disse. Você é uma lógica. Vamos olhar as coisas de maneira lógica então. Como pode preferir Peter Johnson? Olhe para mim: um aluno brilhante, um intelectual formidável, um homem com o futuro assegurado. E veja Peter: um maluco, um boa-vida, um sujeito que nunca saberá se vai comer ou não no dia seguinte. Você pode me dar uma única razão lógica para namorar Peter Johnson?
- Posso, sim. - declarou Polly.
- Ele usa um casaco de pele de marmota.
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